Panorama do Novo Testamento – Livros Históricos

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INTRODUÇÃO AO NOVO TESTAMENTO

  1. Ivan Pereira Guedes

<!—->Os Livros Históricos

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Como foi mencionado, o Novo Testamento pode ser dividido dentro de três categorias, com base em sua constituição literária — o histórico, o epistolar, e o profético. Os quatro Evangelhos compõem 46% da literatura do Novo Testamento e se incluirmos o livro de Atos chegaremos aos 60%. É nesta maior parte do Novo Testamento que está registrada as origens e desenvolvimento histórico do Cristianismo. Ele esta construído sobre estes   fatos históricos. Isto é inerente da própria natureza do evangelho. Cristianismo é a mensagem do evangelho e o que é um evangelho?[1] São as boas notícias, informação derivada do testemunho de outros. Isto é, história, o testemunho de fatos históricos. “O evangelho é notícias de que alguma coisa  aconteceu — alguma coisa que transformou a maneira de se viver. E este alguma coisa é descrita a nós por Mateus, Marcos, Lucas e João como sendo a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.”[2] Seguindo neste mesmo objetivo, Atos continua o relato histórico da expansão da mensagem do evangelho, saindo de Jerusalém, passando pela Judeia e Samaria, e alcançando as partes mais distante da terra. Lucas deixa-nos claro este aspecto:

“Fiz o primeiro tratado (o Evangelho), ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar,  até ao dia em que foi recebido em cima, depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera; aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias e falando do que respeita ao Reino de Deus.” (Atos 1:1-3)                                     Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra.” (Ato 1:8)

Lucas é o primeiro volume e Atos é o segundo da obra de pesquisa histórica efetuada pelo Dr. Lucas  sobre a vida e ministério do Senhor e Salvador Jesus Cristo. Esta história não termina com sua ascensão, mas tem continuidade através do Espírito Santo agindo na vida dos seus apóstolos. Atos é então o relato histórico do ministério apostólico  na vida da igreja em seus primórdios. Estes relatos tornam-se cruciais para uma compreensão correta das epístolas, que foram escritas para pessoas que viveram num tempo-espaço histórico definido.  O Novo Testamento, então, é o registro histórico das Boas Novas de Deus manifestado na história humana, não somente no passado, mas no presente e no futuro à luz das suas promessas .

<!—->Os Evangelhos sinóticos

Antes de iniciarmos o estudo de cada um dos Evangelhos, é necessário entendermos melhor a questão relacionada com os chamados Evangelhos Sinóticos[3].  Embora cada Evangelho tenha sua ênfase e propósito distintos, os três primeiros são chamados às vezes de Evangelhos Sinóticos porque eles “vêem juntamente,” ou seja, eles têm o mesmo ponto de vista em relação à vida e obra de Cristo.  Além disso, eles também apresentam a vida de Cristo em uma forma distinta, mas complementar, da oferecida por João em seu Evangelho.

Este assunto vem ocupando a atenção dos eruditos do N. T, durante o último século e meio[4]. Resumidamente. podemos expor a problemática sinótica conforme o faz, Russell N. Champlin em seu artigo ‑ “0 Problema Sinóptico” – conforme abaixo transcrito:[5]

  1. Os evangelhos foram escritos “independentemente” uns dos outros, sem qualquer fonte comum oral e escrita, sendo narrativas somente feitas de memória?
  2. Se ouve fontes comuns escritas ou orais, de que natureza e quantas eram elas?
  3. Qual dos evangelhos sinópticos é primário? E esse evangelho foi usado diretamente como fonte de Informação pêlos demais evangelistas? Nesse caso, como explicar as diferenças, até mesmo no material em comum?
  4. Qual foi a fonte de material usado pêlos evangelhos não‑primários, naquilo em que estão de acordo entre si, nas passagens que não figuram em Marcos?
  5. Quando um evangelho não‑primário tem material peculiar a si mesmo, qual foi sua fonte informativa?
  6. Quais foram as fontes informativas do evangelho primário?

 

Como podemos perceber nenhuma destas questões podem ser, com justiça. deixadas de lado ou suprimida. Todavia. inumeráveis propostas tem sido produzidas para esclarecer esta questão sinóptica[6]. Cada uma delas é capaz de explicar alguns aspectos do problema, mas não é suficiente para esclarecer todos. Analisando estas propostas chegamos à conclusão de que uma solução definitiva há de ser complexa. A melhor solução é aproveitarmos o que cada uma das diversas hipótese tem de verídico.

Uma vez que os novos estudos acabou pôr tornar obsoletas grande parte das hipóteses elaboradas no século passado, nos limitaremos a expor, para maior entendimento desta questão, apenas os estudos aceito pela maioria dos estudiosos como sendo os mais coerentes.

 

OS PONTOS EM COMUM DOS EVANGELHOS SINÓTICOS

 

  • Estrutura: Os três evangelistas utilizam‑se de um método muito semelhante para elaborarem seu trabalho, como segue: 0 ministério de Jesus tem inicio depois do batismo de João; segue‑se os milagres e pregações feitos na Galiléia; uma viagem para Jerusalém; e por fim encontra‑se os relatos da crucificação e ressurreição de Jesus[7]. Assim, dentro desta estrutura dos Sinóticos seremos induzidos a concluirmos que o ministério publico do Senhor Jesus foi de apenas um ano[8].

 

  • Seqüência das Diferentes Perícopes: Em muitos casos temos os evangelistas relatando na mesma seqüência vários acontecimentos. Os exemplos são vários, como podemos verificar nesta seleção feita por Bettencourt:[9]
  • a trilogia constituída pela pregação de João Batista, o batismo de Jesus e as tentações (Mt. 3:14,12 ‑, Mc. 1: 1‑ 14. Lc. 3:14,14);
  • outra trilogia composta da cura do paralítico, da vocação de Levi e da questão do jejum (Mt.9:1‑17­. Mc.2:1‑22‑, Lc.5:17‑39);
  • os acontecimentos culminantes do ministério de Jesus na Galiléia: a confissão de Pedro, a primeira predição da Paixão. a transfiguração do Senhor, a cura do lunático. a segunda profecia da Paixão (Mt. 16:13‑17:23‑, Mc.2:27‑ 9:32, Lc.9:18‑45);
  • algumas séries de milagres como: a cessação da tempestade, a cura do demoníaco de Genesaré (Mt.823‑34, W.4:35‑5:20‑, LcX.22‑39). a cura da hemorroíssa e a ressurreição da filha de Jairo (Mt.9:18‑26‑, Mc.5:21‑43­. Lc.8:40‑56);
  • a historia da Paixão do Salvador.

 

  • Similaridade na forma literária e no vocabulário: Há uma notável similaridade dentro de cada perícope nas quais algumas frases coincidem literalmente [mais claramente perceptível na língua original]. Deste modo, os três sinópticos trazem, pôr exemplo, a palavra de Jesus ao paralítico usando a mesma formula (Mc.2:lOss.). 0 pedido de José de Arimatéia pelo corpo de Jesus é relatado três vezes com as mesmas palavras (Mc.15:43; Mt.27:58; Lc.23:52). E o dito de que quem quiser salvar a sua vida perdê‑la‑á, mas quem a perder por causa de Jesus [e do Evangelho] salvá‑la‑á, retorna três vezes na mesma formulação (Mc.8:35; Mt 16:25; Lc.9.‑24).

 

  • Citações do Antigo Testamento: 0 peculiar aqui é que mesmo quando a citação é transcrita numa formulação diferente da que consta no Original Hebraico ou na Septuaginta os evangelistas sinópticos a fazem exatamente da mesma forma [mais facilmente perceptível na língua original]. Assim temos Is. 40:3 citado em forma própria em Mt.3:3; Mc.1:3; Lc.3:4; também Mal.3:1 em 11:10; Mc.1:2; Lc. 7:2 7.

 

Todas estas concordâncias, e poderíamos citar muitas outras, demonstram claramente que as semelhanças entre os três sinóticos não podem ser apenas fruto do acaso, ou como se diria que pelo fato deles descreverem os mesmos acontecimentos, acabaram pôr escolherem termos idênticos, mas se crê que deve haver uma relação de dependência literária. Todavia, para que possamos definir melhor tal relação. é preciso observarmos também as não poucas e consideráveis diferenças entre os três evangelhos sinóticos.

 

 

OS PONTOS DIVERGENTES DOS SINÓTICOS

 

Diferenças Quanto ao Conteúdo

 

Há passagens que são peculiar a dois ou a um apenas dos Evangelhos sinóticos, conforme abaixo colocamos alguns exemplos:

 

  • Mateus: é o único a referir‑se à perplexidade de José diante de Maria (1: 18‑25); a seqüência “visita dos Magos a Jesus; fuga para o Egito; morticínio dos inocentes, volta para Israel” (2:1‑23); algumas das Parábolas são registradas apenas por ele ‑ do joio (13:24‑30 e 36‑43), do tesouro. da pérola, da rede (13:44‑50), do servo perdoado, mas inclemente (18:23‑35). das dez virgens (25:]‑l3)~ o registro dc Pedro caminhando sobre as águas (14:28‑3 1).

 

  • Marcos: Dos três é o que menos material exclusivo possui ‑ as curas do surdo‑mudo (7:31­37), do cego de Betsaida (8:22‑26). a Parábola da semente que cresce por si (4:26‑29)… Por outro lado. omitiu completamente o Sermão da Montanha. e silenciou em relação a infância de Jesus.

 

  • Lucas: Como Mateus ele também insere muitos fatos independentes: acontecimentos da infância de Jesus (I e 2)‑, episódio com Marta e Maria (10:38‑42), Zaqueu (19128). Na própria narrativa da Paixão somente ele se refere a atitude de Herodes (23:612) e a do ladrão arrependido (23:40‑43).

 

Divergências na Seqüência dos Acontecimentos

 

Ao passarmos da leitura de um sinótico para outro, podemos perceber muitas vezes que há uma inversão na ordem dos fatos.

 

  • Em Mc 6:1‑6 = Mt 13:53‑58 encontramos o relato de Jesus sendo rejeitado em sua cidade natal, Nazaré; Lc, no entanto, informa já no início da atuação pública de Jesus a respeito de sua primeira pregação em Nazaré (4:16‑30).

 

  • Em Mc 1:16‑20 = Mt 4:18‑22 fala‑se resumidamente da vocação dos primeiros discípulos, enquanto em Lc a vocação de Pedro se segue à pesca maravilhosa (5:1‑11).

 

  • Mc trata primeiramente da afluência do povo e das curas de Jesus, e somente depois disto a vocação do circulo dos doze (3:7‑12, 13‑19); em Lc a seqüência é invertida (6:12‑16: chamado dos doze; 6:17‑19: afluência das multidões e curas).

 

  • Quando Jesus é tentado temos uma inversão nos registros de Mt e Lc em relação a segunda e a terceira tentação (Mt 4: 1 ‑11 e Lc 4:1‑13).

 

  • Mt condensa de forma sistemática o chamado Sermão do Monte ( 5 a 7 ), enquanto Lc o divide em várias porções independentes ( 6:20‑49: 11:11‑13, 33‑36; 12:22‑34. 58ss; 13:24-27; etc … ).

 

Divergências nas Narrativas dos Mesmos Acontecimentos

 

Em várias ocasiões os evangelistas sinóticos utilizam‑se de palavras ou expressões bem diferentes, mesmo quando fazem citação das palavras do próprio Jesus ou de outro personagem, não os registram uniformemente, ocorrendo discrepâncias que por vezes trazem dificuldade ao exegeta. Alguns, exemplos se fazem necessários:

 

  • Mt registra as palavras de João Batista em que ele diz que não é digno de carregar as sandálias do Senhor (3:11); enquanto que em Mc e Lc ele afirma que é indigno de desatar a correia das mesmas (L7, 3:16).

 

  • Mc (6:8) registra a ordem de Jesus aos Apóstolos para que não levassem em suas viagens missionárias senão o bastão habitual para longas viagens, porém. Mt (10:10) e Lc (9:3) registram que até o bastão teria sido proibido.

 

  • A oração do “Pai Nosso” ensinada por Jesus varia: em Mt 6:9‑13 é composta de sete petições. e em Lc 11:2‑4 contém apenas cinco.

 

  • A formula de ordenação da Santa Ceia também é registrada diferentemente em cada um dos sinóticos Mt 26‑26‑28, Me 14:22‑24 e Lc 22:19ss.
  • A inscrição na Cruz de Cristo é descrito diferentemente por eles: Mt 27:37. Mc 15:26 e Lc 23:38 (cf Jo 19:19).
  • As últimas palavras de Jesus também não são registradas das mesma forma pelos sinóticos. Em Mc 15:34 = Mt 27:46 o Senhor Jesus recita as palavras do salmista (22: 1) ” Deus meu. Deus meu, por que me desamparaste?”. Lc omite estas palavras, mas acrescenta outras três, ditas pelo Senhor e não registradas pelos outros dois (Lc 23:34,43.46).

 

Assim. não será necessário multiplicarmos os exemplos para podermos avaliarmos o alcance do problema que nos apresenta. Por que será que dentre tantos ditos e feitos de Jesus (Jo.20:30; 21:25). Os evangelistas sinóticos selecionaram tantos iguais, que eles apresentaram na mesma ordem, usando até mesmo vocábulos iguais, mas, apesar disto, diferenciaram-se em tópicos importantes e de maneira tão imprevista.

 

SOLUÇÕES À QUESTÃO DOS EVANGELHOS S1NÓT1COS

 

Até agora já vimos que os Evangelhos Sinóticos têm muitas características semelhantes, mas, também possuem muitas diferenças. Neste ponto do nosso estudo haveremos de examinarmos algumas possíveis explicações para esta problemática sinótica, não nos esquecendo nunca de que nenhuma delas é por si suficiente para esclarecer todos os pormenores.

 

  • A Hipótese da Mutua Dependência

A mais antiga e talvez a primeira tentativa de explicar como se relacionam entre si os evangelhos sinóticos[10] vem de Agostinho[11], cuja opinião era de que Mateus foi o primeiro a ser escrito e que Marcos se utilizou dele para fazer uma espécie de resumo, enquanto Lucas utiliza‑se tanto do primeiro quanto do segundo para elaborar o seu. E esta opinião do querido teólogo perdurou até aproximadamente 1835, com algumas variações menores.[12]

 

q  A Suposição de um Proto‑Evangelho

De acordo com esta hipótese, os evangelhos seriam diferentes traduções e seleções de um registro apostólico escrito em aramaico, denominado de “Evangelho dos Nazarenos”.  As diferenças narrativas dos evangelistas canônicos se daria pelo fato de que utilizaram-se de diferentes versões do “Evangelho dos Nazarenos” que circulavam por aqueles dias.

Esta explicação todavia é totalmente prejudicada pelo fato de não haver qualquer vestígio da existência deste “Evangelho dos Nazarenos”.

 

  • A Teoria dos Fragmentos

Os defensores desta teoria partem do pressuposto de que havia diversas anotações e registros feitas pelos apóstolos e discípulos a respeito de acontecimentos e ensinos de Jesus. Assim, os evangelistas canônicos tiveram acesso diferenciado destas breves anotações (diegeses) e elaboraram seus respectivos evangelhos.

Se esta proposta explica as muitas diferenças entre os sinóticos, todavia, não explica suas várias semelhanças, não apenas de pontos particulares mas principalmente no que concerne à estrutura dos próprios evangelhos.

 

  • A Proposta de uma Tradição Oral

Os expositores desta hipótese parte do pressuposto de que não havia, documentos escritos sobre o ministério de Jesus antes da produção dos evangelhos canônicos. Assim sendo, a única fonte dos escritores sinóticos foi a “memorabilia” do ministério de Jesus, preservada nas pregações públicas e nos ensinos dos apóstolos e dos demais discípulos que estiveram com o Senhor Jesus Cristo.[13]

Os aspectos defendidos nesta posição são:

  • não se discute o fato de que as narrativas da vida e dos ensinos de Jesus foram transmitidas em forma oral pelas suas testemunhas, em principio;
  • documentos antigos (Papias) nos informam ‑que o Evangelho de Marcos consta da pregação do Apóstolo Pedro, transcritas por solicitação dos seus ouvintes;
  • os judeus tinham uma preferência pelo ensino oral;
  • há provas de que existiu um grupo catequizador, responsável em instruir os novos crentes, utilizando‑se deste método oral.

Assim, concluem os defensores desta hipótese, as semelhanças e diferenças entre as três narrativas sinóticas é decorrentes do fato de que seus escritores utilizaram‑se desta multiplicidade de pregações e ensinos disseminadas em diferentes lugares por vários grupos.

Não resta duvidas de que a tradição oral exerceu uma função importante para a pré‑história dos evangelhos. Todavia, são tremendas as dificuldades para se explicar o fato de que o evangelho foi preservado, com todas as suas múltiplas particularidades, por memória, por um período tão longo de tempo. E ainda mais, esta memorização tinha que ser feita tão rapidamente quanto o Evangelho se propagava por todo o mundo, criando‑se então uma necessidade urgente de traduzi‑lo para novos idiomas quase que simultaneamente. Por tudo isto, a tarefa de surpevisão deste trabalho seria impossível.

 

A Hipótese dos Dois Documentos ou Duas Fontes

 

Esta proposta tem alcançado larga aceitação nos últimos cem anos e seus aspectos mais importantes são:

  • 0 evangelho de Marcos foi de fato o primeiro a ser redigido e posteriormente utilizado pelos outros dois sinóticos corno fonte;

 

  • Mateus e Lucas utilizaram‑se também de uma segunda fonte, distinta

do evangelho de Marcos, que continha o registro de ditos de Jesus,

denominada de “lógia” e posteriormente de documente “Q”.

 

0 primeiro ponto desta hipótese pode ser facilmente percebido conforme os dados abaixo:

  • A estrutura dos evangelhos revela que Marcos deve ter servido de modelo aos dois outros sinóticos.
  • Mateus e Lucas divergem em suas história iniciais, mas coincidem depois, no relato sobre João Batista, que é o ponto de partida de Marcos. Repete‑se a mesma cousa no final, onde as semelhanças entre Mateus e Lucas vão até o ponto a que conduz Marcos 16:8, e depois cada um toma seu próprio caminho narrativo. Deduz‑se disto, que o Evangelho de Marcos lhes serviu como uma fonte referencial.
  • Nas seqüências das perícopes temos mais um reforço da primazia de Marcos. Quando Mateus abandona a ordem de Marcos, Lucas a utiliza; quando Lucas diverge de Marcos, é Mateus quem segue o mesmo caminho. E o mais importante é que Mateus e Lucas, em momento algum, concordam com seqüência diferente da que propõem Marcos.
  • Um outro argumento muito forte é o fato de quase a totalidade do material de Marcos estar contido em Mateus [ dos 661 vv. de Mc, 606 vv. (92%) se acham em Mt]; em Lucas encontraremos aproximadamente 350 vv. de Marcos [53%].
  • Em muitas ocasiões o registro de Marcos e ampliado ou explicado pelos outros dois evangelistas ( Mc.8:29 ‑ Mt.16:16 ‑ Lc.9:20 ‑aqui caracterizando um acréscimo ou comentário; Mc.15:39‑Mt.27:54‑Lc.23:47 ‑ enquanto Mateus altera por causa de reflexões teológicas [evitando chamar Jesus de “homem”], Lucas procura descrever a situação com maior exatidão do ponto de vista histórico [pois dificilmente um gentio poderia dar de imediato um testernunho cristão completo] )[14]

 

0 segundo ponto desta hipótese procura explicar o fato de que Mateus e Lucas compartilham aproximadamente uns 200 vv., que não são encontrados em Marcos, e que contém quase sem exceção palavras do Senhor. Esta segunda fonte é denominada de “Lógia” ou fonte “Q”.                                            :7 WZII5~~

 

Este termo “Logia” é derivado do testemunho de Papias ( escritor do princípio do segundo século), segundo o qual Mateus compusera a “Logia” em língua hebraica (aramaica).[15] 0 termo “lógia”, oráculos [de Deus], se refere mais a uma coleção de narrativas, declarações e ensinos, tais como aqueles apropriados pelos dois evangelistas.

A fonte “Q” [ do alemão “Quelle”‑ fonte] seria então esta “Logia” ao qual se refere Papias e de onde Mateus e Lucas extrairam muito do material não copilado por Marcos. Abaixo transcrevemos um quadro que indica o possível escopo desta fonte “Q”:

 

Mateus                                             Conteúdo                                                                            Lucas

 

1. 3:7‑12                                                  Pregação de João                                                    1. 3:7‑9,16

  1. 4:2‑11 As Tentações 2. 4:2‑13

3. 5:3‑6,11,12,39‑42,45‑58                  Sermão da Montanha I                                         3. 6:20‑23,27,30,32‑36

  1. 5:15; 6:22,23 Luz 15. 11:33‑35

5. 6:9‑13                                                  A Oração do Pai Nosso                                          10. 11:1‑4

  1. 6:25‑33, 19‑21 Ansiedade por Bens Materiais 18. 12:22‑34

7. 7:1‑5,16‑21,24‑27                             Sermão da Montanha II                                       4. 6:37,38,41‑49

  1. 7:7‑11 Acerca da Oração 1.1. 11:9‑13

9. 8:5‑13                                                  0 Centurião de Cafernaurn                                   5. 7:1‑10

  1. 8:19‑22 Natureza do Discipulado 7. 9:57‑60

11. 9:37‑10:11                                        Envio dos Setenta                                               8. 10:1‑12

  1. 10:26‑33 Exortação à Confissão                                17. 12:2‑10

13. 11:2‑19                                              A Pergunta de João                                             6. 7:18‑35

  1. 11:21,23,25,26 Gritos de Ais e Alegria 9. 10:13‑15,21,22

15. 12:22‑30                                           Beelzebu                                                            12. 11:14‑23

  1. 12:38‑42 Recusa de Dar Sinais 14. 11:29‑32

17. 12:43‑45                                           Retomo de Demônios                                         13. 11:24‑26

  1. 13:31‑33 Mostarda e Fermento 20. 13:18‑21

19. 23:4,23‑25,29‑36                            Contra os Fariseus                                               16. 11:39‑52

  1. 23:37,38 Lamentação sobre Jerusalém 21. 13:34,35

21. 24:26‑28,37‑41                                0 Tempo do Fim                                                   22. 17:22‑37

  1. 24:43‑51 Vigilância 19. 12:39‑46

23. 23:14‑30                                           Parábola dor, Talentos                                          23. 19:11‑28

 

A Teoria de Dois Documentos é a solução mais fácil e mais simples para o problema dos Sinóticos, pois ela fala em termos de documentos “escritos”. Todavia, há algumas questões que ela não responde satisfatoriamente:

 

  • Dos 1.068 versículos de Mateus, talvez cerca de 500 vieram de Marcos e em torno de 250 da “Q”; isto deixa cerca de 300 vv. não explicados.
  • Ern Lucas, com a mesma lógica, restam cerca de 580 vv. que não são encontrados nem em Marcos nem na “Q”.

 

Numa tentativa de se explicar estes pontos alguns argumentam que a fonte “Q” foi um documento muito maior que aqueles versículos encontrados em Mateus e Lucas, e que os autores, além de usar os versículos partilhados, escolheram os versículos peculiares ao seu Evangelho, dentre o restante deste documento. Mas esta explicação tem muito pouca aceitação nos dias atuais. A razão é que tal argumentação acaba por criar um documento desajeitado, e o vocabulário e a gramática do material não partilhado são diferentes para proporem uma mesma origem.

Uma outra dificuldade em relação ao documento “Q” é que aqueles estudiosos que tentam reconstituir positivamente as notas características da fonte “Q” não concordam entre si, o que demonstra sua fragilidade. Diversas são estas diferenças entre os críticos:

  • Em que época este documento “Q” foi elaborado (antes da morte de Jesus? Por volta do ano 50: de 60?).
  • Em que língua original foi escrita (aramaico ou grego?).
  • Quem foi seu autor (Mateus, um anônimo?)
  • Em que se fundamenta sua fidelidade histórica?
  • Qual era de fato seu conteúdo total (apenas sermões de Jesus ou também algumas narrativas?)

 

Diante de tantas questões e principalmente pelo fato de não haver nenhuma cópia deste documento “Q” torna‑se muito difícil coloca‑lo como um fato real, deixando‑o apenas como uma possível hipótese para se explicar esta questão dos Evangelhos Sinóticos.

 

CONCLUSÃO

 

Diante do que foi abordado acima podemos afirmar com certeza de que os escritores dos Evangelhos Sinóticos não tiveram uma única fonte “mestre” sobre a vida de Jesus.  Ao contrario, eles foram herdeiros de uma variedade de fontes, que se constituíam na mensagem do Evangelho proclamada no transcorrer de muitos anos.  O prefácio com que Lucas abre sua obra confirma que ao menos ele esteve atento para a diversidade de informações, orais e escritas sobre a vida de Jesus,  que existiam e eram de conhecimento público (Lc.1:1-4).

Ainda que não possamos inferir muitas cousas desta declaração, podemos ao menos inferir sobre o que ele não diz:

  • Ele não define exatamente quem foi os que lhe “transmitiram” estes fatos. Ele também não esta apenas copilando fatos históricos, mas seu objetivo é instruir o seu leitor sobre a “verdade”, neste contexto uma referência à mensagem do Evangelho que extrapolava as fronteiras da igreja primitiva.  Isto é facilmente perceptível uma vez que este era apenas o primeiro de dois volumes que seria concluído com Atos.
  • Ele também não diz precisamente como lhe “transmitiram” estes fatos. Isto abre possibilidade de que ele pudesse ter incluído material advindo de um ou dos dois outros Evangelhos (Marcos e Mateus).  Mas é igualmente possível que ele se referisse a uma ampla tradição oral que se tinha formado no seio da igreja primitiva.  Ou ainda há a possibilidade de que ele se referisse a uma combinação entre a tradição oral e documentos escritos.
  • Ele não define também o meio que utilizou para “ordenar” estes fatos. Apressadamente podemos concluir que ele o fez de forma cronológica, entretanto, a palavra grega por ele utilizada não nos permite esta conclusão – o termo grego apenas indica a idéia de algo que foi “copilado e/ou organizado” sem definir o método utilizado.  Isto indica que o escritor poderia utilizar o seu material conforme os seus objetivos pré-estabelecidos e não apenas dentro da rigidez cronológica dos acontecimentos.  Relacionando com as diferenças encontradas nos Evangelhos, podemos concluir que cada escritor organiza teologicamente este material em função da ênfase que deseja dar à sua mensagem, e não tanto uma preocupação cronológica.
  • Finalmente, o escritor não reivindica ser uma testemunha ocular dos eventos por ele relacionado. Ele diz que os fatos por ele utilizado tem origem em testemunhos oculares, ainda que mais uma vez não defina se foram as pessoas que presenciaram estes fatos ou que estas pessoas os haviam registrado e/ou documentado, mas não havia dúvida de sua parte de que as informações eram fidedignas.

 

Ainda que os demais sinóticos não forneçam detalhes sobre seu escrito, é razoável concluirmos que também trilharam o mesmo processo de Lucas.  Isto nos ajuda a compreendermos que os Evangelhos foram o resultado de um processo deliberado de preservar uma tradição já existente sobre a vida e ensino de Jesus, utilizado pela igreja iniciante.

Deste modo, os Evangelhos com toda a sua diversidade se constituem num testemunho fiel às fontes oculares.  Os objetivos preliminares proposto por cada escritor faz com que ele omita ou inclua material; coloque um dito dentro de um determinado contexto; acrescente comentários interpretativos; demonstrando não apenas uma criatividade em escrever, mas muito mais um aspecto teológico determinado.  O estudo cuidadoso destes recursos habilitarão o estudante sério das Escrituras a escutar e compreender o testemunho dos Sinóticos em um nível mais profundo.

Esta ênfase numa análise redacional que nos leva a esta questão dos Sinóticos também nos possibilita a vermos os vários pontos de vista da mensagem do Evangelho através de autores diferentes que foram norteados pelos seus aspectos teológicos pré estabelecidos, em vez de simplesmente serem conduzidos por uma tradição estática.  Eles não foram simplesmente editores ou copiladores que registraram os fatos sem emitirem nenhum comentário.  Eles desempenharam um papel ativo no esforço de trazerem a mensagem viva do Evangelho, dentro de um contexto determinado e com um propósito definido e provavelmente para um público especifico.

As palavras de Bratcher, conforme abaixo, expressão de forma sucinta este extraordinário trabalho realizado pelos evangelistas:

“Os escritores dos Evangelhos não mudaram a verdade básica da tradição em seu testemunho de Jesus como o Cristo e revelação Pessoal de Deus.  Mas eles trataram sua mensagem como uma tradição viva que podia ser aplicada e reaplicada na vida da comunidade da Fé para chamar pessoas a uma resposta fiel àquela revelação e a Deus.  Esta deve ser a maior contribuição que podemos tirar do estudo do Problema dos Sinóticos, porque em última instância esta também continua sendo a nossa tarefa hoje e deve se constituir também no propósito pelo qual devemos continuar a estudar a Sagrada Escritura.”[16]

 

[1]“0 termo grego [ Euaggeélion ], que se traduz por «evangelho», provém do grego profano. Significava, por exemplo, em Homero e Plutarco, a recompensa dada ao mensageiro por sua mensagem; ou, no plural, as ofertas de ações de graça aos deuses por uma boa nova. Por extensão, veio a designar, em Aristófano por exemplo, a mensagem propriamente dita, e depois, o conteúdo da mensagem, a boa nova anunciada. Assim o aniversário do imperador Augusto, chamado deus e salvador, foi festejado como «o começo, para o mundo, das boas novas, que ele trazia.» A tradução grega do Antigo Testamento, chamada Setenta (Septuaginta), emprega esta palavra também para assinalar mensagens felizes. Entre os cristãos primitivos, o euaggélion, é primeiramente a boa nova da salvação realizada em Jesus Cristo, tal qual é anunciada oralmente pelos apóstolos. Somente mais tarde, o termo se aplica à forma escrita desta boa nova apostólica. Enfim, chega a designar (por volta de 150 d.C.) aqueles escritos do Novo testamento que contam mais precisamente a vida terrestre de Jesus Cristo. E é neste sentido que se fala dos quatro evangelhos e que se chamam de evangelistas os autores aos quais são atribuídos: Mateus. Marcos, Lucas e João.”  Oscar Cullmann, A Formação do Novo Testamento, Ed. Sinodal, São Leopoldo, 1979, pp. 19-20.

[2] J. Greshem Machen, op. cit, p. 17.

 

[3] “A palavra sinótico (synoptico) vem do grego synoptikós de svnopsis (svn, com + ópsis, visão) e significa ‘o que tem a mesma visão, ou perspectiva’. Realmente, a designação (Evangelhos) Sinóticos se originou do fato, em 1776, Griesbach dar o nome de sinopse a uma publicação do texto paralelo dos três primeiros Evangelhos.” MIRANDA. 0 A, Estudos Introdutórios dos Evangelhos Sinóticos. ed. Cultura Cristã. São Pauloo. 1989, p.4 1.  Wallace é taxativo: “Qualquer discussão séria dos Evangelhos Sinóticos devem, mais cedo ou mais tarde, envolver uma discussão da interrelação literária entre Mateus, Marcos e Lucas.  Isto é essencial para que se veja como cada autor utilizou-se das suas fontes, bem como quando ele escreveu.”  Daniel B. Wallace, O Problema dos Sinóticos, wallece@bible.org.

[4]Tal problema não preocupou muito os antigos e medievais, com exceção talvez de S. Agostinho (+430) na sua obra ‘De Consensu Evangelistarum’ … A questão sinóptica data, pode‑se dizer. de fins do século XVIII; desde então os críticos a têm estudado com afinco, dando à luz uma bibliografia sobre o assunto que hoje é vastíssima. BETTENCORT, Estevão.  Para Entender os Evangelhos, Livraria Agir Editora. Rio de Janeiro, 1960. p. 187.

[5]RUSSELL, N. C. ‑ 0 Novo Testamento Interpretado. ed. 5″. v. 1, Milenium, São Pauloo, 1985. p. 174.

[6] No início de 1913, o Pe. Prat contava mais de cem teorias arquitectadas para explicar o ‘caso sinótico’ e acrescentava: ‘Se o problema sinótico ainda não foi resolvido, isto se dá certamente porque é insolúvel’ (La question synoptique), em Etudes 134 [1913] 350.). BITTENCORT, E. op. cit.. p. 191 “Nota”.  Certamente este número cresceu muito desde então, mas cremos, que à luz da exegese contemporânea. podemos encontrar algumas explicações satisfatórias quanto à questão sinótica, embora não sejamos esclarecidos sobre todas as suas múltiplas particularidades.

[7]“A tal esquema Mateus e Lucas antepõem episódios da infância de Jesus. os quais. pelo seu estilo e o seu sabor, constituem evidentemente blocos literários independentes do corpo da narrativa.” Estevão Bittencourt, Para Entender os Evangelhos, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1960,  p. 186.

[8] “No evangelho de João, em contraposição, Galiléia e Jerusalém alternam‑se várias vezes como cenário dos acontecimentos, os quais parecem estender‑se por um período de cerca de três anos.”  [          ]

[9] BETTENCOURT, op. cit., p. 187.

[10] Nos prínieiros séculos tinha como pensamento comum a idéia de que os Evangelhos haviam surgido independentemente um do outro. Somente em meados do quarto século levantou‑se o fato de que os Sinópticos eram, de alguma fornia, interdependentes.

[11] “Assim, em sua obra The Harmony of the GospeIs 1. ii. 4, (La armonía de los Evangelios), Augustín, después de hacer algunos comentários sobre Mateo, dice: ‘ Marcos lo sigue estrechamente, y parece ser su acompanãnte y abreviador’.” HENDRIKSEN, Guillermo. EL EVANGELHO SEGUNTO SAN MATEO ‑ Comentário del Nuevo Testamento. Subcomisión. Literatura Cristiana, EE. UU., 1986, p.4 1. “Deve ser lembrado que este conceito surgiu porque Agostinho estava cônscio de que o Evangelho de Mateus era bem conhecido no segundo século e era sempre listado em primeiro lugar, em toda lista dos livros do Novo Testamento.” HALE, Broadus David. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO NOVO TESTAMENTO. JUERP, Rio de Janeiro, 1983, p.56.

[12] “Teoricamente há seis possíveis variações desta hipótese. Os vários defensores de cada unia destas variações, baseia-se na ordem cronológica dos três sinóticos (quem escreveu primeiro?). Todavia, apenas três opiniões demonstram capacidade de sustentação: A seqüência aceita por Agostinho [Mateus Marcos ‑ Lucas] conforme exposto acima; A hipótese da seqüência [Mateus ‑ Lucas ‑ Marcos] onde Marcos é totalmente dependente de Mateus e Lucas, enquanto os dois últimos são totalmente independentes um do outro; A terceira seqüência seria Marcos‑Mateus e Marcos‑Lucas, onde evidência‑se a predominância de Marcos sobre os outros dois evangelistas.

 

[13] “Um outro fator a considerar na solução do problema sinótico é a pregação oral da primitividade cristã.  Antes dos Evangelhos serem escritos, a vida de Jesus era o âmago da pregação apostólica, como se vê no sermão de Pedro no dia de Pentecostes (At.2:22-32), no sermão na casa de Cornélio (10:36-43) e no sermão de Pauloo em Antioquia da Pisídia (13:23-33).  Os sinotistas não podiam ignorar esta tradição oral, como se lhe costuma chamar.”  Merrill C. Tenney,  O Novo Testamento – Sua Origem e Análise, 2 ed., Edições Vida Nova, São Pauloo, 1972, p.209.

[14] Assim coloca Hendriksen: “Por lo tanto, el punto que hay que notar es este: Marcos parece ser “el hombre del medio”. Cuando Lucas se aparta de él, Mateo generalmente permanece com él; cuando Mateo se aparte, Lucas casi siempre queda a su lado.” HENDRIKSEN, G. op. cit., p.48.

 

[15] “Mateus confeccionou a Logia no hebraico (aramaico), e cada leitor a interpretou conforme a sua capacidade” PAPIAS, História Eclesiástica, III: xxxix, 16.

 

[16]Dennis Bratcher,  Os Evangelhos e o Problema dos Sinóticos, @eletrônico.

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